21 de jun. de 2009

Relação entre pobreza e sobrepeso

Até recentemente se acreditava que nos países em desenvolvimento, como o Brasil, obesidade seria característica típica da elite socioeconômica. Estudos refutam essa interpretação



Estudos sobre a relação entre nível socioeconômico dos indivíduos e presença de obesidade são bastante comuns nos países desenvolvidos. A revisão sistemática dessas pesquisas indica que, nesses países, a obesidade tende a ser mais freqüente nos estratos da população com menor renda, menor escolaridade e com ocupações de menor prestígio social, sendo essa tendência particularmente evidente entre mulheres adultas. Há até pouco tempo, admitia-se situação oposta nos países em desenvolvimento, onde a obesidade seria característica da elite socioeconômica. Estudos mais recentes demonstram, no entanto, grande heterogeneidade na relação entre nível socioeconômico e obesidade no mundo em desenvolvimento e evidências sugestivas de “migração” do sobrepeso do ápice para a base da pirâmide social nos países cujo Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassa US$ 2.500 per capita.



Outra maneira de analisar a relação entre nível socioeconômico e obesidade é estudar a evolução da enfermidade ao longo do tempo em um mesmo país ou região, o que fazemos a seguir para o Brasil no período entre 1975 e 2003, empregando como marcador da condição social o nível de escolaridade alcançado pelos indivíduos.



Tendência ao Aumento de Peso



A tendência secular da obesidade no conjunto da população adulta brasileira, e em estratos dessa população constituídos com base na escolaridade alcançada pelos indivíduos, pode ser conhecida a partir de três inquéritos domiciliares probabilísticos realizados no país em 1975, 1989 e 2003 (Figura 1).



No sexo masculino, a prevalência global da obesidade aumenta uniforme e intensamente ao longo dos inquéritos: 89% no primeiro período de 14 anos (1975-1989) e 73% no segundo período de também 14 anos (1989-2003). No sexo feminino, a obesidade também apresenta importante crescimento no primeiro período (aumento relativo de 68%), mas quase não se altera no segundo (aumento relativo de somente 5%). Como resultado, ao longo dos três inquéritos o excesso de obesidade na população feminina, em relação à masculina, declina de quase três vezes (1975) para aproximadamente uma vez e meia (2003).



Entre homens, observa-se aumento generalizado na prevalência da obesidade em todos os estratos de escolaridade ao longo dos dois períodos analisados. No caso das mulheres o aumento generalizado da obesidade ocorre apenas no primeiro período. No segundo período, a obesidade ainda tende a aumentar entre mulheres do quarto inferior de escolaridade (essencialmente mulheres sem escolaridade), porém se estabiliza ou mesmo declina nos demais estratos.



A comparação da variação proporcional na prevalência da obesidade nos períodos 1975-1989 e 1989-2003 está registrada na figura 2. Nesta etapa da análise foram controladas variações em fatores que poderiam distorcer o efeito da escolaridade sobre a obesidade, como idade, região e área de residência.



Nos dois períodos, e em ambos os sexos, observa-se que a velocidade de expansão da obesidade é maior nos estratos de menor escolaridade. No segundo período há nítida relação linear inversa entre porcentagem de expansão da obesidade e escolaridade nos dois gêneros, ainda que em patamares distintos. A relação entre crescimento da obesidade e posição relativa na escala de escolaridade passa a apresentar um claro efeito “dose-resposta” no segundo período, efeito não observado no primeiro. No caso da população feminina é possível notar variação negativa de 1989-2003. Nesse intervalo, o único estrato de mulheres a apresentar variação positiva mais significativa na freqüência de obesidade é o de menor escolaridade, com variação de 10,4%.



A Relação com o Nível Socioeconômico



As razões apontadas por diferentes autores para a relação direta entre nível socioeconômico e obesidade nos países em desenvolvimento são relativamente simples e se referem à proteção natural contra a enfermidade que caracterizaria os estratos sociais menos favorecidos com escassa disponibilidade de alimentos e perfil de intensa atividade física. A relação inversa, comumente observada nos países desenvolvidos, aparenta ser mais complexa e envolveria maior conhecimento a respeito das conseqüências da obesidade e das formas para preveni-la que teriam os estratos sociais mais privilegiados e, ainda, o fato de serem maiores as pressões sociais e familiares sobre esses estratos para manter uma imagem corporal delgada, consistente com os valores estéticos atualmente dominantes nas sociedades de países desenvolvidos.



Desvantagens relacionadas ao ambiente, incluindo menor disponibilidade de oferta de alimentos de menor densidade energética, como frutas frescas, verduras e hortaliças, e acesso limitado a espaços urbanos mais propícios para a prática de atividades físicas no lazer poderiam igualmente justificar o maior risco de obesidade encontrado nos estratos sociais menos privilegiados das sociedades desenvolvidas. Aventa-se ainda como possível explicação para a relação inversa entre nível socioeconômico e obesidade a hipótese da mobilidade social, segundo a qual indivíduos obesos, particularmente adolescentes do sexo feminino, teriam mais dificuldades em prosseguir seus estudos e galgar níveis superiores de escolaridade.



Estudos sobre os mecanismos subjacentes à relação inversa entre nível socioeconômico e obesidade em países em desenvolvimento ainda não estão disponíveis na literatura e, desde já, são relevantes prioridades para a pesquisa populacional. De qualquer maneira, independentemente das razões que vêm determinando que os estratos sociais menos favorecidos da população brasileira percam sua proteção contra a obesidade (homens) ou sofram intensificação de sua maior exposição à doença (mulheres), a constatação desses fatos acarreta implicações importantes que serão a seguir comentadas.



Implicações da Migração Social



A primeira implicação é que, mantida a tendência de concentração da obesidade nos estratos sociais menos favorecidos, serão enormes as repercussões futuras sobre a distribuição social da carga total de doenças no Brasil. Além de a obesidade ser em si uma enfermidade, estudos prospectivos têm demonstrado que sua ocorrência aumenta de forma significativa a morbimortalidade por diversas doenças não transmissíveis, incluindo em particular diabetes, hpertensão arterial, doença coronariana isquêmica, doença da vesícula biliar, complicações do aparelho locomotor e cânceres de cólon, mama, endométrio e próstata.



Tendo em conta a inevitável ascensão da exposição a essas enfermidades, decorrente do simples envelhecimento da população, e a observada diminuição em nosso meio da incidência da maioria das doenças infecciosas e carenciais, é razoável considerar que a obesidade poderá brevemente se constituir, possivelmente ao lado do tabagismo, em um dos fatores singulares mais importantes para a geração de desigualdades sociais em saúde no Brasil.



A segunda implicação é que a tendência de evolução da obesidade no Brasil mais e mais dependerá da evolução da enfermidade nos estratos sociais menos favorecidos da população, motivo pelo qual esses estratos devem merecer maior atenção das políticas públicas e programas destinados à prevenção e controle da enfermidade.



A terceira implicação diz respeito à importância de investigar os mecanismos principais que têm determinado a progressão acelerada da obesidade nos estratos menos favorecidos da população brasileira. Um melhor conhecimento desses mecanismos certamente contribuirá para aumentar a efetividade das políticas e programas de controle à obesidade em nosso país.



CONCEITOS-CHAVE

- Os resultados deste estudo confirmam a hipótese de “migração” da obesidade do ápice para a base da pirâmide social nos países em desenvolvimento.

- Mantida essa tendência, a obesidade poderá brevemente constituir, ao lado do tabagismo, um dos fatores mais importantes para a geração de desigualdades sociais em saúde no Brasil.

- Com a evolução da obesidade no Brasil nos estratos sociais menos favorecidos da população, eles devem merecer maior atenção das políticas públicas e programas destinados à prevenção e controle da enfermidade.

PESO AUMENTA COM BAIXA ESCOLARIDADE



Validade dos resultados



Alguns fatores falam a favor da validade interna dos resultados aqui apresentados:



1) o caráter probabilístico e as semelhanças quanto ao processo de amostragem empregado pelos três inquéritos;



2) o diagnóstico da obesidade feito a partir do exame antropométrico dos indivíduos (e não de informações recordadas, como ocorre com alguma freqüência em estudos sobre tendência secular da obesidade);



3) a confiabilidade que tradicionalmente caracteriza as informações sobre o nível de escolaridade dos indivíduos;



4) o controle de variações temporais em variáveis que poderiam influenciar a evolução da ocorrência da obesidade nos diferentes estratos de escolaridade (idade, região e área de residência).



Os resultados deste estudo confirmam, em essência, a hipótese de “migração” da obesidade do ápice para a base da pirâmide social nos países em desenvolvimento que alcançaram um mínimo de crescimento econômico.



METODOLOGIA DO ESTUDO



Os três inquéritos domiciliares analisados neste estudo são o Estudo Nacional sobre Despesa Familiar (Endef), realizado de agosto de 1974 a agosto de 1975, a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN), de junho a setembro de 1989, e a Pesquisa Orçamento Familiar (POF), de julho de 2002 a julho de 2003, todos executados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Procedimentos similares foram empregados nos três inquéritos para a constituição das amostras de domicílios representativas do país, envolvendo estratificação socioeconômica prévia dos setores censitários de cada região, sorteio sistemático de setores censitários e sorteio sistemático de unidades domiciliares dentro de cada setor. O total de domicílios sorteados em 1974/75, 1989 e 2002/03 foi de, respectivamente, 53.311, 14.455 e 46.611, excluídos aqueles da área rural da região Norte, estudados apenas em 2002/03. O presente estudo se restringe à amostra de adultos com idade igual ou superior a 20 anos, excluídas as gestantes, 124.274 em 1974/75, 32.651 em 1989 e 106.809 em 2002/03.



Nos três inquéritos os procedimentos para coleta dos dados analisados neste estudo foram similares. Equipes treinadas tomaram medidas de peso usando balanças portáteis calibradas, com os indivíduos estudados descalços e vestidos com roupas leves. A altura foi medida com fitas inextensíveis com os indivíduos descalços e com a cabeça corretamente posicionada. A idade foi calculada com base na certidão de nascimento ou documento equivalente. Homens e mulheres foram classificados como obesos quando seu Índice de Massa Corporal (IMC, calculado pelo peso em kg dividido pela altura em metros ao quadrado) era igual ou maior que 30 kg/m2.



A escolaridade foi classificada segundo quartos crescentes de anos de estudo em cada inquérito, ou seja, em cada pesquisa os indivíduos foram agrupados em quatro grupos de tamanho semelhante, o primeiro reunindo os 25% da população com menos anos de estudo, o segundo reunindo os seguintes 25%, o terceiro reunindo os seguintes 25% e o quarto reunindo os 25% da população com mais anos de estudo. Outras variáveis levadas em conta neste estudo foram: faixa etária (20-24, 25-34, 35-44, 45-54, 55-64 e 65 ou mais anos), macrorregião de residência (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul ou Centro-Oeste) e situação do domicílio (urbana ou rural).



A proporção de obesos foi calculada, em cada inquérito, para cada um dos estratos de escolaridade considerados neste estudo. A seguir, os bancos de dados dos três inquéritos foram compatibilizados e combinados de modo a obter um banco reunindo as amostras dos inquéritos realizados em 1974/75 e 1989, e outro reunindo as amostras dos inquéritos realizados em 1989 e 1997, acrescendo-se nos dois bancos criados uma variável “dummy” (0 ou 1) correspondente ao ano de realização do inquérito. A partir desses dois arquivos, foram então calculadas, para cada estrato de escolaridade, razões de prevalência (RP) relativas a mudanças na freqüência de indivíduos obesos entre 1974/75 e 1989 e entre 1989 e 2002/03.



As razões de prevalência já consideram o efeito sobre a freqüência da obesidade de eventuais variações entre os inquéritos quanto à distribuição de variáveis que podem influenciar a proporção de obesos como faixa etária, região e área de residência. O percentual de variação no período foi calculado como o logaritmo da RP ajustada. Neste caso a proporção de variação é bidirecional e pode ser lida em qualquer sentido. Todas as análises deste estudo levam em conta ponderações decorrentes da diferente probabilidade de seleção dos domicílios estudados em cada inquérito e a influência dos desenhos amostrais no cálculo das estimativas de variância.



por Wolney Lisboa Conde e Carlos Augusto Monteiro

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